Wendy Vitória está prestes a completar 16 anos. Têm olhos claros, meio mel, cabelos da mesma cor. Adolescente, gosta de pizza com muito queijo. Gosta de escrever. Tem nos contos de terror sua maior inspiração. Mas, é quando ela mostra seu xodó que se nota que ela é diferente das demais garotas. Vai até o quarto e traz uma mala. Ao abrir, uma coleção de bonecas, todas chamadas pelo nome que ela mesma escolheu. Os brinquedos são intocáveis, nem mesmo a irmã dois anos mais jovem pode mexer e se isso acontecer é briga na certa. A mocinha, agarrada a dois bichinhos de pelúcia, abre uma única exceção: crianças pequenas tem acesso livre ao seu mundo infantil.

As características no comportamento de Wendy são clássicas de quem tem autismo (no caso dela, grau Leve). E isso vem lá da infância. Desde muito cedo, Siane Pereira, a mãe da adolescente, desconfiava de que ela era diferente. Quando a filha mais nova nasceu, as comparações se tornaram inevitáveis e as discrepâncias se tornaram mais notáveis. Siane sabia lá no fundo, que era mãe de autista.
Acontece que ela esperou 13 anos pela confirmação médica. Foram mais de uma década trocando de profissionais, viajando para outras cidades em busca de novos tratamentos, de inúmeros exames, de noites de angústia. Até que finalmente, Siane recebeu o tão sonhado laudo. Para ela, um alívio. Afinal, diferente do julgamento de alguns – inclusive de médicos – ela não era louca ou estava criando caraminholas na cabeça.
“Passei por todos os pediatras, fui para Curitiba. A Wendy ficou quase um ano gritando sem parar quando era bebê. Na escola, sofreu preconceito. Apesar de escrever brilhantemente, só foi alfabetizada aos 12 anos! Os professores não entendiam o que ela tinha, achavam que ela era ‘lerda’. Os médicos diziam que era laringite, garganta. Quando eu recebi o laudo do doutor Emerson (Canelo, neurologista que vem apoiando as mães de autistas na região) foi tranquilo e foi um dos dias mais felizes da minha vida, porque eu sabia que tinha algo errado com a minha filha e agora era correr em busca de um tratamento correto”, conta a mãe.
E foi exatamente assim. Com o laudo de autismo, Siane dava início à outra batalha, agora um tanto tardia: o tratamento contínuo da Wendy, diagnosticada com o Transtorno do Espectro Autista (TEA). Nessa corrida contra o tempo, ela encontrou outras famílias, a maioria lideradas por mães ou avós, mulheres que tinham problemas idênticos – e poucas respostas – com os seus filhos e netos. O que começou com um simples grupo de WhatsApp em setembro de 2019, se transformou em uma vontade de ir além e de buscar com unhas e dentes os direitos dos autistas. Nascia na cidade de União da Vitória, a Associação Autismo sem Barreiras.

DIAS DE LUTA
A maioria das quase 70 mães que fazem da Associação tem uma narrativa semelhante. O histórico é de inúmeras visitas aos consultórios, de aportes financeiros, de conselhos que esbarram em constrangimentos. “Quando descobri que meu filho tinha autismo, criei o grupo (de WhatsApp). Foi numa madrugada de desespero. Porque eu sabia que não tinha nada concentro. Criei um grupo com uma mãe que eu conhecia e isso acabou indo parar na rede social e logo tínhamos mais pessoas ali. Pensei em cada mãe que corria para lá e para cá como eu”, conta Elenice, mãe de gêmeos, sendo um autista. “Quando nos encontramos, logo decidimos por criar a Associação. Até então, cada pai e mãe ia por conta, como podia. Cada um na sua capacidade”, completa Débora Raquel Innocêncio, avó de um menino autista de 13 anos. Elisângela Borille, mãe de Ana Carolina, de 7 anos, conta que além de inconscientemente comparar o comportamento dos filhos, percebeu pelo feed back da escola e de um pediatra que algo estava errado. Mas, não foi nada elegante receber o “toque” dos profissionais. “Achavam que era birra. Para chegar num diagnostico, é difícil, especialmente no caso do (grau) leve. A minha filha dava volta entorno da mesa ou dava pulos. Isso não era normal. Ela não falava nada até os dois anos. Os doutores falavam que ela tinha preguiça”.
A Associação Autismo sem Barreiras vem fazendo o que o Poder Público não faz ou, pelo menos, vem dando um empurrãozinho para que as ações saiam do papel e sejam mobilizadas pelos órgãos competentes. Embora amparada pela Lei Berenice Piana (leia mais no fim da matéria), um marco na inclusão dos autistas entre os demais portadores de deficiências, as mães e avós levam outras demandas aos vereadores e também à imprensa, outra aliada local das pautas do grupo. Tem dado certo.
A entidade já conseguiu uma sala própria para o trabalho administrativo e encontros entre os familiares e em 2020, a emissão da carteirinha do autista. Neste ano, a Associação conquistou também a aprovação da Lei Municipal 14/2021, que obriga os estabelecimentos públicos e privados a identificar o atendimento prioritário para os autistas; uma mobilização apoiada por parlamentares na capital do Estado pela inclusão dos autistas na lista prioritária de vacinação para a Covid-19; a confecção de folder e camiseta da entidade e a inclusão no Conselho Municipal de Saúde. A entidade tem página no Facebook e com frequência, promove lives sobre o tema, com convidados que atuam na área da saúde especial. Ainda, ela arrecada doações voluntárias e estampa na camiseta seu lema: o autismo sem barreiras.

Mas, o caminho ainda é longo e nele, os autistas enfrentam as limitações de suas famílias, seja por falta de informação sobre o Transtorno ou de recursos, ou pela espera na fila do Sistema Único de Saúde (SUS), onde a maioria das mães e avós está. O SUS dispõe de terapias, porém é preciso aguardar cerca de um ano, em média, para acessar aos benefícios. “Essa espera é a diferença na vida delas. O tempo é precioso. Um dia sem terapia, é tempo perdido. O trabalho é diário. É 24 horas. O terapeuta faz e a gente segue em casa, o tempo todo”, explica Siane. “Cada dia é um crescimento que retrocede”, completa Elenice.
O sonho da Associação é oferecer num modelo de Clínica-Escola, todas as terapias necessárias para os que têm TEA de maneira gratuita (fonoaudióloga, psicóloga, fisioterapia, terapia ocupacional, psicopedagogia, equoterapia e neurologia). Hoje, quem consegue pagar, segue um passo à frente das demais mães; no entanto, a luta da entidade é justamente por quem não tem condições de oferecer algo especial aos seus especiais. Alguns autistas da entidade recebem o auxílio do Beneficio de Prestação Continuada (BPC), cujo valor é de um salário mínimo mensal. No entanto, considerando a paleta de terapias necessárias no acompanhamento do autismo, o valor se torna impraticável para custeio. Segundo as mães, o aporte mensal para o autista custa em torno dos R$ 2 mil.
DIAGNÓSTICO TARDIO
O autismo é considerado um transtorno onde o cérebro se desenvolve de maneira diferente, afetando principalmente a capacidade de comunicação e interação social. Desde 2013, o autismo clássico e suas outras formas, como a síndrome de Asperger – grau mais leve de autismo relacionado à genialidade – são englobados no TEA. Diferente do que se pensava até bem pouco tempo, o autista não é aquele que fica em seu mundo particular. Essa definição tosca talvez se refira à dificuldade que o autista tem na dificuldade de interagir socialmente.
“Além disso, o autista tem atraso na aquisição da linguagem e comunicação, pode não responder ao nome quando chamado e nessa falta de interação, não apresentar sorriso social, ter pouca atenção à face humana, pouco contato ocular. Ele gosta de brincar sozinho”, explica o neurologista Emerson Canelo, profissional parceiro da Associação Autismo sem Barreiras.
Os autistas também têm estereotipias (movimentos repetitivos, como balançar o corpo e balançar as mãos), além de intolerâncias à sons, cheiros e texturas nos alimentos. O autismo é um espectro. Isso significa que varia de níveis/intensidade. O leve, é o grau em que chama a atenção comportamento repetitivos; moderado, no qual há déficit nas habilidades de comunicação verbal e não verbal; e severo, quando a capacidade cognitiva é altamente prejudicada, exigindo suporte absoluto.
Contudo, apesar de ser tão expressivo e aparentemente claro, o diagnóstico do autismo não é tão simples. Canelo conta que vem diagnosticando adultos, que apenas agora, na casa dos 20 ou 30 anos, vem descobrindo que são portadores do TEA. Há pessoas que passam a vida toda sem o laudo – e o pior, a vida toda tentando se encaixar. Parece justo, de fato, que o símbolo do autismo seja quebra-cabeça, tamanha sua complexidade e compreensão.
“O diagnóstico ainda é difícil principalmente também pela falta de conhecimento da população geral e profissionais da saúde, mas também por dificuldade em aceitação do diagnóstico pelos cuidadores. Alguns casos, mais leves e com características não tão marcantes, podem inclusive confundir um profissional experiente”, avalia o neurologista. A falta de um exame para “bater o martelo” no diagnóstico, também compromete a identificação do TEA. “O diagnóstico é feito através das características clinicas, geralmente avaliadas por mais de um profissional experiente na área. Os exames são utilizados para descartar outras doenças que possam estar confundindo ou criando sintomas parecidos”.
Sem um laudo, o inicio tardio do tratamento compromete o desenvolvimento do autista. Embora nenhum autista seja igual a outro, as opções de tratamento são bastante parecidas e dão bons resultados. “Quanto mais precoce o diagnóstico e antes iniciarem as intervenções, melhor vai ser a evolução do paciente e consequentemente melhor sua qualidade de vida e independência na vida adulta”, garante o médico.
Dados mostram como é fato a emissão de pouquíssimos laudos para autismo, seja pela dificuldade profissional em checar na definição ou pela falta de informação/procura dos pais e familiares: estima-se que em uma cidade de 100 mil habitantes, pelo menos 1800 são portadores do TEA. A prevalência de pessoas com autismo chega à 1 caso a cada 54 pessoas (dado de 2020, publicado pelo Centers for Disease Control and Prevention dos EUA). Estudos recentes apontam que há mais de dois milhões de autistas no Brasil, mas estima-se que o número real possa ultrapassar os três milhões, justamente por conta do diagnóstico tardio. No caso específico de União da Vitória, de acordo com a Secretaria Municipal da Saúde, há cerca de 90 autistas na cidade com cadastro em alguma entidade de apoio. No entanto, estima-se que o número seja muito maior. Não existe uma contagem oficial. A falta de pesquisa cientifica sobre o transtorno é tão presente na região e no País que o simples levantamento de informações básicas se torna difícil e instável.
Dissecada pela primeira vez em 1943 pelo psiquiatra infantil austríaco Leo Kanner, a condição passa por constantes releituras. Por exemplo, já é comprovado que a incidência de casos é maior entre meninos do que em meninas. Também, que a maioria dos casos é acompanhada por comorbidades, entre elas em especial, a ansiedade, a depressão, o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), o transtorno opositor desafiador, a epilepsia e a deficiência intelectual. Aliás, a maior causa de morte entre autistas é o suicídio, devido às altas taxas dessas características particulares. A expectativa de vida dos autistas, segundo um estudo do Instituto Karolina da Suécia, estes morrem 16 anos mais cedo do que o resto da população.
AUSTISTAS CRESCEM
Boas iniciativas vêm ganhando impulso nos últimos anos, mas tudo é muito recente. Os desafios das mães e avós da Associação aumentam a cada aniversário de seus filhos e netos, afinal, os autistas crescem. “Se fala muito em inclusão, mas quando existe, percebo um investimento apenas nas crianças; os autistas vão crescer; o que seria o ideal para um futuro onde os autistas vivam naturalmente como as demais pessoas?”, questiona o neurologista Emerson Canelo. Esse é o grande gargalo da entidade. O assunto é pouco debatido no Brasil. Mas, devagar, dá para chegar lá e bons exemplos vêm aparecendo no cenário.
Joyce Rocha, 28, designer e fundadora da startup aTip, em entrevista à revista Veja na edição de 21 de abril, contou sua experiência de sucesso. Autista, ela afirma que conseguiu abrir a própria empresa e até criar um evento pró-autismo. Mas, se diz exceção da exceção. “Meu sonho é que casos de sucesso como o meu se tornem mais comuns”. Pensando no próximo, a analista de TI da B2W, Milena Yamamotto, lembra que sim, autistas crescem, e que está na hora dos projetos deixarem apenas de assistir a infância. A parte dela está feita: Milena criou o projeto Inclusão Humanizada para integrar pessoas com autismo no mercado de trabalho. Sua narrativa também está na Veja.
Quem consegue uma colocação, ainda não vê luz no fim do túnel. Falta plano de carreira, por exemplo, e o enfrentamento diário dos colegas ainda é uma realidade. Desinformados, há quem insista em tratar os autistas com um certo tom infantil. Na maioria absoluta das vezes, o autista é como qualquer outro humano, indivíduos com fragilidades intensas e talentos incríveis, simples e complexos seres.
LEI BERENICE PIANA
Berenice Piana é uma militante brasileira, co-autora da lei 12.764, sancionada em 28 de dezembro de 2012, que leva seu nome. O documento instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtornos do Espectro Autista. Entre outros prontos, a Lei aponta que é a responsabilidade do poder público quanto à informação pública relativa ao TEA e suas implicações. Também, a legislação diz que é de novo do poder público que deve partir a iniciativa de capacitar profissionais para o atendimento multidisciplinar, além dos pais e responsáveis para que melhor possam cuidar das pessoas autistas sob sua proteção. A lei também dispõe sobre as políticas de inclusão do autista na rede de ensino regular e defende a realização de pesquisa sobre o transtorno.